Ao olhar pela minha janela, sem vista de grande valor, tenho a imagem de diversos apartamentos. Vizinhos que me dão a possibilidade de viver uma experiência completa de janela indiscreta, gosto de ficar observando quando me sinto sozinha, crio lá minhas narrativas.
Era um tempo que havia uma família formada por um casal, um bebê e dois golden retriever. Sim, dois cachorros enormes em um apartamento com uma sacada minúscula (talvez aí esteja o motivo da sua mudança). Essa família me deu momentos de fofura na interação dos cachorros com o bebê, um momento de preliminares sexuais do casal - que eu vi apenas o início, sem querer, e me questionei em como seria bizarro eu ser essa pessoa que tira a privacidade silenciosa do mundo a dois - e a conclusão que eu não seria a única pessoa extremamente bagunceira do meu quadrante, mas eu também não tenho um bebê e dois goldens em casa.
Meu outro vizinho é carioca e, por vezes, fica A TARDE INTEIRA na sacada falando no telefone e andando de lá pra cá. Ele faz a questão que todos os demais ouçam o que ele fala em sotaque carioca super forte, além disso, é um grande apreciador de churrascos de quebrar a quarentena, cigarro e música brasileira de churrasco mesmo.
A terceira vizinha que vou citar aqui é de uns apartamentos acima, o que faz com que eu não consiga ver o seu rosto mas eu escuto a sua voz pois ela é professora de canto e faz vocalizações diárias, lives nas redes sociais pedindo sugestões de músicas pra ela cantar e repete mil vezes uma canção que está sendo ensaiada.
Bom, eu crio as histórias dessas pessoas conforme alguns momentos da vida delas passam por mim. Penso quantas vezes presumimos a história de alguém pelos poucos momentos que conhecemos dela e também baseado no que esses momentos querem dizer para mim.
Eu sei que a Frida Khalo era uma artista que nasceu no México, tinha obras autobiográficas e se relacionou com outro artista chamado Diego Rivera que era um baita de um…
muralista.
Mas será que a Frida Khalo gostava de café? O que será que ela pensava sobre deixar cachorro preso na coleira? Ela preferia doce ou salgado? Ou quem sabe ela teria um paladar infantil? A Frida fazia janela indiscreta com seus vizinhos?
Isso me faz pensar que a gente conhece muito pouco, até mesmo, sobre as personalidades mais conhecidas, não tem como saber tudo e, porque não, o que a gente sabe é um conhecimento tão terceirizado que nem podemos ter certeza se ele é real, ou se não nos foi escondido algum outro detalhe importante (pelo menos na nossa opinião).
Quando a gente estuda história, estamos em um mar de incertezas e pontos de vistas sobre fontes materiais e imateriais da nossa sociedade. Os estudos acadêmicos são rígidos para que os fatos sejam bem embasados, mas também para construir essa consciência de que não há verdade, há verdades e o que a gente estuda é a história do que permaneceu, dos conceitos que ficaram, dos momentos que interessaram para quem está escrevendo, dos povos que sobreviveram e, principalmente, venceram.
A história cotidiana está sempre acontecendo, na vida de cada um vai rolando e ela não se repete, como muitas pessoas gostam de falar. Não quero entrar em nenhum academicismo aqui, mas pensa comigo: se todos acontecimentos históricos são cumulativos, a gente vive um pra poder viver o outro, depois o outro, depois o outro e tudo nos influencia. Como uma coisa pode se repetir? O que nós conhecemos agora, da maneira que nós conhecemos, os povos antigos não conheciam. Assim como várias práticas foram se perdendo e dando espaço pra outras que nem sempre são melhores. Isso tudo é levado em consideração no estudo da história oficial, a escrita, publicada, falada e estudada, mas onde está o resto da história?
O resto da história está aí, escondida dos termos técnicos, na rua, em casa, na praia, nas nossas relações, nas nossas vivências, nas criações dos indivíduos do dia a dia, na fofoca, no papo furado, no momento não registrado, no olhar perdido, na palavra não ouvida, na gambiarra, no puxadinho, na receita infalível da vó.
A história está ai como cantam Milton Nascimento e Chico Buarque na Canción Por La Unidad de Latino America:
“A História é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue. É um trem riscando trilhos, abrindo novos espaços, acenando muitos braços, balançando nossos filhos.”
Os estudos não tem como dar conta de tudo e eu diria que ainda bem! Porque há várias decepções quando se descobre que uma situação histórica foi bem menos interessante do que pensávamos, para o cotidiano é melhor deixar a poesia.
Julia Balbinotti Perosa
Fotógrafa e historiadora
Atriz do coletivo O Bando
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