A História medieval não é uma história da Europa (cristã e homogênea) como se convencionou a pensar e como ainda é ensinado em muitos de nossos livros didáticos. O que existiu foi um período com intensas trocas culturais entre a Europa, África e Ásia, assim como entre as três religiões de matriz abraâmicas, como o Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo, em que a conexão destes continentes e religiões contribuíram para uma determinada fusão cultural e artística.
Essa transculturalidade presente no medievo produziu ressonâncias em suas produções artísticas. Um bom é a Mesquita de Córdoba no contexto de Al-Andaluz (península ibérica), na qual é possível perceber as influências entre uma estética islâmica e cristã.
Embora a arte na Idade Média não tivesse o mesmo sentido que a arte possui nos dias hoje, uma vez que a palavra designava ofício (eram profissões ligadas ao fazer e saber humanos na construção do conhecimento). Todavia, é possível fazer uma relação entre a estética medieval com a imagem e, por imagem, entendemos uma pintura, vitral ou mesmo imagens mentais produzidas durante a leitura (ou escuta) de um poema, por exemplo.
A imagem (ou imagens) no medievo era alegórica. Ultrapassava a simples ideia de uma mera representação e possuía várias camadas de significações. Ela ainda era o meio para acessar uma verdade divina revelada, bem como estaria vinculada a uma cosmovisão, uma filosofia ou mesmo uma teologia. Assim, o que era importante na imagem na Idade Média era a mensagem a ser transmitida e não a forma em si.
Essa concepção medieval sobre imagem, estética ou “arte” abre um leque de possibilidades para interpretar e sentir uma polissemia de significados, incorporando elementos que atravessam diversas culturas e tradições (judaísmo, cristianismo e islamismo) e espaços (Europa, África e Ásia).
E esses atravessamentos nos convidam a refletir: A imagem também não seria atravessada por tempos diferentes, como passado, presente e futuro? É possível identificar mais de uma dessas experiências temporais na imagem (ou imagens)?
Ao partir desses questionamentos e motivados pelas inúmeras camadas de significados que as imagens possuíam na Idade Média podemos responder que sim, é possível pensar as imagens a partir de inúmeras camadas temporais.
Desta forma, a imagem também é constituída pelo contexto do artista que a produziu. Isto significa dizer que a imagem (ou obra de arte) é composta pelo tempo histórico do artista, isto é, do tempo presente. Ao mesmo tempo, essa mesma imagem tem, durante sua produção, as expectativas do artista, suas intenções ao produzi-la e como será sua recepção. É uma relação direta com o futuro. Além disso, a imagem ainda presentifica as experiências que o artista acumulou durante sua vida, ou mesmo durante seus estudos para elaborar aquela obra de arte. Essas experiências (ou repertório) está vinculado ao passado.
Assim, a imagem é capaz de dinamizar por meio do presente, o(s) passado(s) em destino, em futuro, em desejo, em que esse(s) passado(s) se dialetiza na pretensão de um futuro. Ela humaniza e configura o tempo ao entrelaçar seus fios condutores, assegurando sua transmissão. Isso nos permite compreender a imagem como um vórtice transtemporal. As imagens são como fragmentos da História (Benjamin, 1987) presentes no tempo presente, para além de sua própria visibilidade. Estar diante destas imagens é estar diante das temporalidades que as constituem (Didi-Huberman 2015) e nos constitui. Para Antônio Samain (2011, p.40), as imagens não são apenas cortes no tempo e golpes no espaço, elas são nossos próprios olhos e “[...] também, os reflexos e os rastros de uma longa história de olhares que nos precederam, os fluxos e refluxos do presente, as pistas e as antevisões da longa aventura humana”.
Rodolpho Bastos
Doutor em História pela Universidade Federal
de Santa Catarina (PPGH - UFSC)
- - - - - - -
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouane. São Paulo: Brasiliense, 1987.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
SOMAINI, Antônio. Genealogia, Morfologia, Antropologia das Imagens, Arqueologia das Mídias. IN: EISENSTEIN, Sergei. Notas para uma história geral do cinema. Rio de Janeiro: Azougue, 2014.
Comments